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Leia um conto inédito do novo livro de Eduardo Mahon

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Após sete livros publicados nos últimos quatro anos, Eduardo Mahon começa 2017 com uma nova obra. “Contos estranhos”, publicada pela Carlini & Caniato Editorial, é uma edição bilingue que reúne 35 contos pequenos e um conto longo que pode ser tomado como novela.

De acordo com o escritor, os contos de “Contos estranhos” têm em comum o aspecto da literatura fantástica, onde as impossibilidades físicas são tratadas com naturalidade, o que, segundo Mahon, causa uma certa perplexidade no leitor. “Pois é essa perplexidade que busquei causar ao retratar, por exemplo, um homem sem gravidade, uma mulher que conversa com um buraco na parede, uma menina que rouba cores e, finalmente, no caso de Santiago Ayza – o homem do país que não existe”, explicou.

Mais informações sobre a obra e o lançamento serão divulgados em breve. Enquanto isso, leia abaixo um conto inédito:

A menina que roubava cores

Dizia-se que Estela era filha de um pintor. Mas o tal artista nunca deu as caras para assinar a certidão de nascimento daquela menina que não foi batizada. Aos três anos, a mãe percebeu o problema – não saía nenhuma palavra da boca da criança, nem som, nem grunhido, nem nada. Aflita, a mãe levou Estela ao médico que, após revirar a menina de ponta-cabeça, não encontrou problema algum nas cordas vocais ou anormalidade que a fizesse muda. Deve ser preguiça. Como assim? Preguiça, claro, há crianças que simplesmente demoram a falar e não se sabe a razão. E o jeito, doutor? O jeito, minha senhora, é esperar. Ela era uma mulher valente. Costurando para fora, criou a filha sozinha, sem dar satisfação aos curiosos de quem seria o pai. É um problema só meu, dizia à madrinha, uma beata da única igreja do lugarejo. É esquisito e pronto. Para mim não é, dindinha. É sim, minha filha, a criança vive acabrunhada pelos cantos; precisa de batismo, isso sim. Coitada, é apenas quieta demais. Chama o pai às falas! Olha aqui, dindinha, não falo quem é o pai nem com surra de marmeleiro. A velha carola desistiu, assim como declinaram da curiosidade as vizinhas fuxiqueiras que rondavam a pequena casa branca na qual moravam a mãe solteira com a filha estranha. O tempo não operou para que Estela falasse. Mantinha-se em casa e não fazia nada mais do que pintar aquarelas. A menina começou a ser hostilizada, sendo tomada por abobalhada. Aos sete anos, já mocinha, ela chegava no armazém com a lista escrita e saía da venda sempre com menos do que o dinheiro podia comprar. Penalizava-se a mãe ao ver Estela sofrer com a cisma do povo. Minha filha, você não quer contar para a mamãe porque você não fala?, perguntava sempre. A menina sorria com os olhos e mantinha-se tão serena quanto o cândido silêncio que cultivava. Mas de aparvalhada Estela não tinha nada. Sabia exatamente o que pensavam dela, quem a maldizia e por qual motivo. Decidiu-se pela vingança. Mas não uma reação beligerante que seria frustrada pela força. Não, isso seria chancelar o mexerico de que ela era uma espécie de forasteira indesejada. Estela deveria ser mais sutil e fatal. Depois de refletir no que faria, numa manhã enfiou a paleta que usava na bolsinha rosa e foi andar sem rumo pela aldeia. Por onde chegava, tirava o suporte de madeira que usava para pintar e o deixava tomando ar no balcão da mercearia, no altar da igreja, no banco da praça, enfim, por onde passasse durante a ronda matinal. Aos poucos, os cidadãos foram percebendo que as cores ficavam menos nítidas, mais esmaecidas. A túnica do padre, os vestidos florais das mulheres, as fachadas coloridas dos grandes sobrados, até mesmo o verde das árvores que escoltavam qualquer transeunte pela avenida central do vilarejo. Todas as cores foram se empalidecendo até chegarem a um cinza esquálido. O alcaide, perplexo com o fenômeno, decretou estado de emergência e foi acordar o único juiz da comarca. As beatas armaram-se de fé. Entre uma e outra novena, excomungaram Estela com sua maldição de meninice. A mãe escondeu a menina na casa da madrinha por dois dias. Não adiantou. Quem a entregou foi o médico chamado às pressas para dar respostas ao inexplicável. De lá saiu sem saber a doença da menina, nem tampouco a diferença entre o azul e o amarelo e, com medo do que poderia mais acontecer à saúde pública, dedurou o paradeiro de Estela. Montaram guarda em frente à casa, com velas de luzes esbranquiçadas. Quem preparou a emboscada para a manhã seguinte, frustrou-se. Ao amanhecer, a menina foi visitada por um arco-íris que entrou pela janela do quarto. Pisando em cores, foi-se ela de braços dados com a mãe para um lugar aonde toda aquela gente para sempre desbotada jamais saberia o paradeiro.

Sobre o autor

Eduardo Mahon nasceu no Rio de Janeiro e mora em Mato Grosso, desde 1980. Articulista, polemista, advogado, professor de Criminologia, Direito Penal e Processual Penal, membro do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, ingressou na Academia Mato-grossense de Letras em 2007, ocupando a cadeira 11, cujo patrono é Augusto João Manuel Leverger, o Barão de Melgaço.

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