O livro “Festa”, de Aclyse de Matos, convida o leitor para uma excursão literária por Cuiabá, fazendo algumas paradas rápidas em outros locais de Mato Grosso. Publicado em 2012 pela Carlini e Caniato Editorial, a obra contém 42 poemas divididos em duas partes: “Lado A: poemas” e “Lado B: Canções”, prezando a musicalidade até mesmo na estruturação.
Antes de falarmos sobre a obra, vamos apresentar um pouco de seu autor. Aclyse Mattos nasceu em Cuiabá, dias antes da cheia de 59 que inundou o Porto. É “poeta nas horas cheias e professor nas horas vagas”, como ele mesmo diz. Além de Cuiabá, morou também no Rio de Janeiro e São Paulo. É professor do Departamento de Comunicação da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), mestre pela Universidade de São Paulo (USP) e doutorando pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Voltando ao livro: O “Lado A: poemas” já começa com um hai-cai aviso que vale para toda a obra:
Arcádia
Versos são como dentes:
muito perfeitos
parecem falsos.
O movimento literário arcadismo, referenciado no título do hai-cai de abertura, surgiu como reação ao período barroco. O poetas do arcadismo procuravam restabelecer o equilíbrio, a harmonia e a simplicidade em sua literatura. E é na aparente simplicidade que adentramos o universo criado por Aclyse Mattos em “Festa”.
A poesia contida na obra trabalha muito com o ritmo das palavras (principalmente na segunda parte), tanto que, ao lermos alguns poemas, criamos melodias ao longo da leitura. Um dos exemplos mais queridos neste aspecto é o “Pedido”. Você pode ouvir o poema clicando AQUI.
Pedido
Xos braço, xas mão,
eu vou pedir
xo corpo todo
pra xeu Jão.
Xas canela, xas cotxa…
Rufa xas coisa;
ruma a mala,
djunta a trotxa.
Xia minina, xia moça,
vamo simbora.
Tá na hora, ruma a trotxa!
Xos cabelo, xos beidjo
é goiabada nos xo beiço,
eu viro queidjo.
Xos olhinho, xos queitxo,
e se xa mãe vim te buscar
eu num te deitxo.
Xa cintura, xos peito
e aproveito
enquanto tá tudo no djeito.
Xas oreia, xos olhinho
e aproveito
pra pedir xo umbiguinho.
Xa boca, xa pretcheca,
Eu ixcrusive
quero toda ocê
compreta.
Xas perna, xa xana,
Eu quero ocê,
num tem mais beira
pra xa mana.
Xos braço, xas mão…
Bão, bão, bão!
Em “Pedido”, vemos um elemento que aparece em vários poemas: A inserção do sotaque cuiabano na escrita. Por muito tempo, a cultura erudita considerou tudo o que não estivesse de acordo com a norma culta como um erro. Na poesia de Aclyse, estes “erros” transformam-se nos traços singulares da cultura cuiabana. Voltamos então ao hai-cai de abertura: “muito perfeitos, parecem falsos”. A autenticidade da escrita em “festa” busca não só resgatar, mas retratar de forma viva e dinâmica uma Cuiabá que tem um retalho cultural muito rico.
Quando falamos em cultura cuiabana, logo pensamos em saias de chita, viola de cocho, pequi, onça pintada, etc. Estes elementos estão presentes na obra, mas complementado pelo outro lado da identidade regional: Os artistas contemporâneos, muitos deles ainda vivos (Ivens Cuiabano Scaff, Adir Sodré, Irigaray), os “pau-rodados” ou pessoas que vieram de outros lugares e por aqui ficaram, nomes da cultura nacional e universal, dentre outros.
O patriotismo, ou melhor, o regionalismo está presente em todos os versos, mas, às vezes, de forma irônica. Vemos isso no poema “Quando Levy-Strauss passou em Cuiabá”, onde Aclyse nota que o famoso antropólogo belga não deve ter nem reparado na rua Treze e ter repetido para si mesmo “tristes trópicos tristes trópicos”. A ironia está ainda mais presente em “antimetafísica”:
Antimetafísica
Cuiabá: cidade do antimistério,
onde a rua Voluntários da Pátria
acaba no Cemitério.
É com esta mistura de ironia e saudosismo, regionalismo e universalidade, norma culta e norma coloquial, que temos a complexidade de retalhos que formam o livro “Festa”. Aclyse apresenta uma Cuiabá completa, ambígua, rica, com pessoas de todos os jeitos, falando com o sotaque tradicional ou arranhando o francês, subindo as ladeiras do Araés ou sonhando em morar na Suíça, mas que, todos, acabam por contribuir com as melodias que agitam a festa cuiabana.
Identidades móveis
ou
pau-fincado que rodou
trouxe o rio
leva o rio
na cidade à beira-rio
quem ficou
é pau-fincado
quem chegou
é pau-rodado
quando é cheia
água de chuva
se enlameia
traz entulho
galharada
enche o rio
pau-rodado
encalha e fica
quem está cá
faz que finca
sobe o rio
ou passa o rio
pau-fincado
não sei vai
enrosca e fica
Cuiabá
agarrativa
trouxe ou traz
enchente ou chuva
deixa o rio
a vida o fio
pau-rodado
pau-fincado
vão ficado
ou roda e fica?
E se a chuva
modifica
troca os alhos
por bugalhos
isso ainda
vai dar galhos
futriqueia
ou desce os malhos
como está
pior não fica?
Cuiabá
não sei se sou
pau-fincado
que rodou
que fincou
tanto andei
enchi, voltei
nestas águas
me agarrei
se saí
ou se só sei
nosso rio
tem pacu
nosso céu
o tuiuiú
destruíram
as palmeiras
espantaram o sabiá
não permita
Deus que eu pare
de rodar
e de fincar
Cuiabá
não sei se sou
mas sei sim
seu sol seu som
pau-rodado
ou pau-fincado
se aqui fica
é que tá bom
Onde comprar
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